Nova definição do STF sobre medicamentos não incorporados ao SUS aumenta burocracia, dizem advogados 

Lei infraconstitucional pode contornar efeitos da decisão

O Supremo Tribunal Federal (STF) definiu parâmetros para o fornecimento, por decisão judicial, de medicamentos registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mas não incorporados ao Sistema Único de Saúde (SUS), independentemente do custo. O mérito do Recurso Extraordinário (RE) 566471, com repercussão geral (Tema 6), teve o julgamento iniciado em março de 2020. A tese, proposta em um voto conjunto dos ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, foi levada ao Plenário Virtual, e o julgamento foi encerrado no mês passado. Advogados ouvidos pela reportagem dizem que as novas definições criam mais burocracia e barreiras para as famílias que precisam de medicamentos, mas uma lei infraconstitucional pode ter o condão de contornar os efeitos da decisão.

A decisão pode impactar o acesso ao medicamento Voxzogo, que só no Brasil já contribuiu com a melhora significativa da qualidade de vida de 250 crianças e adolescentes com acondroplasia. O fármaco, indicado para pacientes a partir dos 6 meses de vida, é capaz de auxiliar no crescimento de crianças com acondroplasia, que é a forma mais comum de nanismo. Além de não estar disponível no SUS, o Voxzogo tem um valor da venda que pode chegar a R$ 3 milhões por ano, uma quantia inacessível para a maioria. É por meio da Justiça que as famílias conseguem obrigar o Poder Executivo a pagar o tratamento.

O STF definiu, como regra geral, que, se o medicamento registrado na Anvisa não constar das listas do SUS (Rename, Resme e Remune), independentemente do custo, o juiz só pode determinar seu fornecimento de forma excepcional. O autor da ação judicial deve comprovar os seguintes requisitos:

  • negativa de fornecimento do medicamento na via administrativa, nos termos do item ‘4’ do Tema 1.234 da repercussão geral;
  • ilegalidade do ato de não incorporação do medicamento pela Conitec, ausência de pedido de incorporação ou da mora na sua apreciação, tendo em vista os prazos e critérios previstos nos artigos 19-Q e 19-R da Lei nº 8.080/1990 e no Decreto nº 7.646/2011;
  • impossibilidade de substituição por outro medicamento constante das listas do SUS e dos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas;
  • comprovação, à luz da medicina baseada em evidências, da eficácia, acurácia, efetividade e segurança do fármaco, necessariamente respaldadas por evidências científicas de alto nível, ou seja, unicamente ensaios clínicos randomizados e revisão sistemática ou meta-análise;
  • imprescindibilidade clínica do tratamento, comprovada mediante laudo médico fundamentado, descrevendo inclusive qual o tratamento já realizado; e
  • incapacidade financeira de arcar com o custeio do medicamento.

Se todos esses requisitos forem cumpridos, caberá ao Judiciário, no caso de deferimento judicial do fornecimento do medicamento, oficiar aos órgãos competentes para avaliarem a possibilidade de sua incorporação no âmbito do SUS. A tese deve ser aplicada a todas as ações judiciais similares – futuras ou já em curso no Judiciário (ainda que sujeito à modulação dos seus efeitos).

O sócio do Lobo de Rizzo Advogados e professor da Universidade de São Paulo (USP), Luis Fernando Guerrero, explica que antes, o magistrado não tinha baliza e obedecia critérios próximos aos definidos pela decisão atual. “Se antes era possível definir sem exigir muita demonstração, agora pelo menos três pontos principais devem ser obrigatoriamente observados assim que uma ação é judicializada: dificuldade financeira, utilidade para o tratamento e não possibilidade de substituição”, cita.

A advogada e presidente da Comissão Nacional de Bioética junto ao Conselho Federal da OAB, Caroline Santos, acredita que agora o juiz pode não conceder o medicamento, dentro dos vários critérios que foram estabelecidos. “O advogado que acompanha a família do paciente vai precisar provar com uma robusta documentação que o medicamento é imprescindível”, afirma.

Para Marlos Nogueira, que também é advogado e vice-Presidente do INN, em um cenário em que a maioria dos pacientes que recorre à judicialização para obter medicamentos não têm recursos financeiros para arcar com advogados especializados, especialmente de grandes escritórios, e muitos são assistidos pela Defensoria Pública, é esperado que os novos requisitos tornem a obtenção de decisão judicial quase impossível. “O acesso à Justiça, garantido pela Constituição, está se tornando mais difícil devido ao rigor técnico exigido para a defesa, criando barreiras que favorecem apenas quem tem recursos, enquanto muitos ficam à margem, sem conseguir garantir seus direitos essenciais”, complementa.

E-book informativo

Um e-book desenvolvido pelo escritório de advocacia Machado Meyer, discute em detalhes as implicações dessas decisões e seus efeitos na gestão de saúde pública e individual. O documento levanta a necessidade de desenvolvimento de plataforma nacional unificada para medicamentos judicializados e de realização de análise de impactos de proteção de dados decorrentes do compartilhamento de dados pessoais sensíveis de pacientes.

Um protótipo do sistema deve ser apresentado até dezembro deste ano. O e-book também inclui a possibilidade de avaliação sobre integração da plataforma em situações cuja prescrição eletrônica do medicamento ainda não seja permitida pelas regulações sanitárias em vigor (medicamentos de receita colorida), além dos impactos aplicáveis a ações que envolvam medicamentos já incorporados, mas ainda não fornecidos no SUS.

Lei infraconstitucional

O entendimento do STF é feito na ausência de uma legislação. Isso porque a Constituição nesse aspecto é programática, ou seja, ela diz genericamente que todos têm direito à saúde. “Seria necessária a criação de uma norma para regulamentar essa questão. O fato é que essa norma nunca veio e o Judiciário estava no papel de fazer política pública. Uma lei, ainda que infraconstitucional, pode prevalecer porque vai orientar a atuação de todas as autoridades e, portanto, dos jurisdicionados. Tudo depende de regulamentação e boa parte do que o STF faz é por falta de uma regulamentação”, ressalta o advogado Luis Guerrero.

Atualmente, existe o Projeto de Lei Complementar n° 149, de 2024, de iniciativa do Senador Romário de Souza (PL/RJ), que trata sobre os requisitos para que os entes federados forneçam medicamentos não incorporados ao SUS ou não registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e sobre o reconhecimento da solidariedade dos entes federados pela promoção dos atos necessários à concretização do direito à saúde.

Na justificativa da criação da lei, Romário escreve que o objetivo da decisão do STF “não é uma tentativa de organizar o sistema Único de Saúde e a judicialização do acesso a medicamentos. Para longe disso, as exigências ali postas criam barreiras insuperáveis para pacientes que dependem de medicamentos como única esperança de tratamento, principalmente em casos de doenças raras e ultra raras. O privilégio da burocracia em detrimento da urgência à vida está sendo escancarado. Portanto, o objetivo principal deste projeto é promover segurança jurídica, equidade e justiça social, assegurando que a população tenha acesso a medicamentos necessários para garantir o pleno exercício do direito à saúde, mesmo em situações excepcionais”.

O projeto aguarda despacho para ser discutido no Senado, depois na Câmara e, por fim, ser encaminhado para sanção presidencial.

Kamylla Rodrigues

Kamylla Rodrigues é formada em Jornalismo pela Faculdade Alves Faria (ALFA). Já trabalhou em redações como Diário da Manhã e O Hoje, em assessorias de imprensa, sendo uma delas do governador de Goiás, além de telejornais como Band e Record, onde exerce o cargo de repórter atualmente.
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