Preservando uma família atípica

A família é uma organização sob constante ameaça de dissolução. As causas são estudadas por sociólogos, teólogos, psicólogos e outros profissionais que entendem a importância da formação dos sujeitos dentro do seio familiar. A mudança nos horários de trabalho, uma sociedade centrada no consumo e prazer, o esfacelamento dos valores morais; tudo contribui para que a instituição da família seja diretamente afetada.

Não bastando todas essas pressões, famílias atípicas, nas quais um filho ou algum outro integrante possui alguma deficiência, são particularmente mais afetadas. Os índices variam entre 23% de divórcio, em caso de Síndrome de Rett[1], até o alarmante 78% de abandono paterno em casos de filhos autistas[2].

A notícia de diagnóstico raro ou atípico gera tensão e ansiedade no casal, de modo que, imediatamente, rotina e sentimentos mudam. Nesse sentido, creio que algumas orientações podem ser úteis para nós.

Cuide do seu casamento

Pode parecer que o cuidado com o casamento é algo “do passado, pois agora temos o desafio maior de construir uma família”. Nada é mais enganador. Uma família saudável se desenvolve a partir de laços conjugais saudáveis. Os conflitos no casamento e, por fim, o divórcio, impactam profundamente na formação emocional e psicológica dos filhos. E, por mais que se pense que o divórcio seja preferível à infelicidade, o melhor é evitar que se chegue à tal infelicidade. Nesse sentido, muitas atitudes podem ser tomadas:

  1. Crie memórias

Nossa vida não é marcada só pelo presente, mas também pelos momentos que cultivamos no passado. O passado funciona como uma semente: se não plantamos, nada florescerá. Se plantamos, algo de bom irá crescer.  Sendo assim, é importante que o casal viva momentos intensos de amor, carinho, sorrisos, brincadeiras e até mesmo registre, seja em foto ou em texto, tais momentos. Criem uma playlist de música de casal que os faça sempre lembrar de uma viagem ou tempo prazeroso.

Talvez isso não seja possível em algumas relações, como, por exemplo, quem engravidou antes de casar-se, sem ter planejado. Nesses casos, ainda assim é importante criar meios de eternizar momentos. Isso pode ser feito com uma viagem ou um casamento dos sonhos, mas também comendo um lanche juntos, sentados na calçada. Boas memórias se constroem onde há amor.

  1. Não se escondam

Uma das coisas mais estranhas que existem é o casamento onde não há uma interpenetração de almas. Um casal sempre será constituído por duas pessoas, mas nunca deve ser por dois indivíduos isolados. Recentemente, conheci um marido que emprestava dinheiro para a esposa. Não sei que tipo de acordo é esse, mas é estranho. Casais que têm seu precioso e necessário momento particular, mas pensam que não precisam prestar contas, esclarecer onde estavam. Ou, ainda, que tratam o celular como um tesouro escondido, que o parceiro não pode tocar ou saber a senha.

Toda a obscuridade no casamento atrapalha a união plena do casal. Quem ama precisa estar vulnerável a ser ferido. Por mais desconfortável que isso pareça, você também só será feliz num casamento se você puder ser você, sendo aceito como você, e aceitando em amor a outra pessoa que se revela diante de você.

Não procure “culpados”

O sentimento de culpa rapidamente toma o coração de famílias atípicas. Será que foi algum médico? A culpa não é do sistema de saúde? Será que meu filho faz isso por causa de sua condição? Será que ele não é só mimado?

A culpa é importante para a formação da nossa consciência moral. No entanto, ela tem lugar e tempo apropriados.

O ambiente familiar cuja culpa é a força motriz se tornará pesado e insuportável. Especialmente em momentos de tensão, evite jogar a culpa no cônjuge. Opte pelo silêncio, pela espera, depois por uma abordagem pacífica caso realmente haja um culpado. Na maioria das vezes, você irá notar que não houve. Isso torna o ambiente leve, fácil de conviver. E é uma via de mão dupla – é bastante improvável que só uma pessoa esteja “vacilando” no convívio.

Em ambientes carregados pela culpabilização, a criança acaba absorvendo tudo aquilo, sentindo como se ela mesma fosse a culpada por sua condição, deficiência, conflitos conjugais dos pais e, até mesmo, a responsável pelo divórcio deles.

Faz parte do ser humano e seu ímpeto religioso buscar expiar as culpas em alguém. Mas a maioria das religiões também sabe que o outro ser humano não pode suportar todas as culpas sobre si mesmo. Daí a expressão “bode expiatório”. Mas reserve isso para a religião, não faça de seu cônjuge, seus médicos, da sociedade e, principalmente, de seus filhos os bodes.

Aceite a nova realidade

Pais de filhos atípicos experimentam o sentimento de luto. Morre um filho ideal, “padronizado”, para, então, nascer o filho real que está diante de mim. Esse processo é difícil. Muitos homens fogem, abandonam covardemente seus lares e deixam as mulheres com toda a demanda da criança. Não conseguem lidar com o luto. As mulheres, por sua vez, de modo compreensível, mas não saudável, podem se tornar superprotetoras, impedindo aquela criança de se desenvolver dentro de suas condições. Sabendo que pais atípicos passam por esse processo, é importante aceitar que ele existe e que ele passa. Sim, passa! Você notará que, mantendo-se firme e constante, aquilo que parecia impossível se torna uma missão de amor, com momentos de prazer indescritíveis. Os momentos difíceis, de dores e lágrimas, recorrentemente voltarão, mas não serão a totalidade da experiência.

Busque uma rede de apoio

Talvez esse seja um ponto bastante desafiador. Não gostamos de receber ajuda. Nossa sociedade nos impulsiona para sermos autossuficientes. Tenho uma péssima notícia: ninguém é autossuficiente. Desde o nascimento, precisamos do leite materno, da provisão do pai, de professores, de médicos. Viver em sociedade, como diria Aristóteles, é a plenitude do desenvolvimento humano, o que nos diferencia dos animais.

Família atípicas precisam compartilhar e ouvir outras experiências. Muitas vezes necessitam de ajuda financeira e/ou de auxílio psicológico. E não há nenhuma vergonha em admitir isso. O Instituto Nacional de Nanismo, o Somos Todos Gigantes, o Nanismo Brasil e tantos outros são redes de apoio para pais, mães e famílias que estão dentro dessa nova realidade. Sua família, comunidade, paróquia, igreja, seus grupos de amigos, seu moto clube… tudo isso ajuda em nossa jornada atípica. Deixe-se envolver pela compaixão das pessoas e se permita compadecer. Nenhuma sociedade é prejudicada pelo excesso de compaixão. Somos prejudicados quando não olhamos para a dor e para as dificuldades do próximo.

Vamos adiante, construindo famílias fortes e unidas na luta!


[1] https://www.scielo.br/j/csc/a/8gxYg3rZB6BB9KZNnHfgbcD/?format=pdf&lang=pt

[2] ARNONI, Gustavo. Pais de filhos doentes: encontrando Deus no sofrimento de uma criança. Curitiba: Reforma livraria e editora, 2022, p. 121

Gustavo Arnoni
Autor do livro “Pais de filhos doentes: encontrando Deus no sofrimento de uma criança” Professor de Filosofia e Teologia, com formação em Pedagogia.
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